domingo, 23 de dezembro de 2007

Closer, 2005

Alguns dos filmes que vejo me impressionam de tal forma que acabam entrando pra minha mitologia pessoal - filmes que me explicam o mundo, que lhe dão sentido, que voltam de tempos em tempos querendo me dizer alguma coisa. Closer é um deles.
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Já foi muito impressionante da primeira vez em que o vi, em 2005, num momento da minha vida em que era impossível não me identificar (de fato, o mal-estar provocado pelo filme talvez tenha mesmo interferido na minha própria trama...). Mas o interessante é que, em diversas outras situações, Closer me serviu e ainda me serve de intertexto, de matéria para "ruminar" e para tentar desatar alguns nós das minhas relações afetivas/amorosas.
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Na época de seu lançamento, li uma crítica - do Contardo Calligaris, da Folha - que também acabou me marcando bastante. Acho que ele faz algumas reflexões muito pertinentes, não só acerca do filme, mas também acerca dessa maluquice que são os relacionamentos amorosos. Pra mim, é especialmente feliz o item 5.
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Eis o texto:
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"Closer - Perto Demais": por que somos infelizes em amor?
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Concordo com Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Mas "Closer - Perto Demais", de Mike Nichols, me deixou pensando diferente: de perto, somos normais demais.
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O filme é uma demonstração tocante de nossas impotências e incompetências sentimentais. Se você quer saber por que, em regra, somos infelizes em amor, não perca.

Para não estragar o prazer de quem não viu o filme, nada de resumo, apenas as reflexões fragmentárias com as quais passei a noite, depois de ter assistido a "Closer - Perto Demais".

1) Por que, no meio de uma história amorosa que funciona, um encontro (que sempre parece mágico) pode levar alguém a trocar a intimidade de um casal companheiro por uma visão?

Os evolucionistas dizem que os homens são infiéis por necessidade biológica. Para que a espécie continue, os machos seriam programados com o desejo de fecundar todas as fêmeas possíveis. A teoria tem uma falha: as mulheres são tão infiéis quanto os homens (embora os homens se recusem a acreditar nessa banalidade).

O senso comum tem outra explicação: a paixão iria se apagando com a repetição, os humanos gostariam de novidade. Pequeno problema: a idéia de que a novidade seja um valor é especificamente moderna; no entanto a inconstância em amor é um hábito antigo. Outro problema ainda maior: na condução de nossas vidas, somos obstinadamente repetitivos. Insistimos nas mesmas fantasias e nos mesmos sintomas. Contrariamente ao que diz o provérbio, errar é divino, perseverar é humano. Por que seria diferente em matéria amorosa? Como pode ser que um encontro, em que mal se sabe quem é o outro ou a outra, contenha uma promessa que basta para levar alguém a dar um chute num amor que dura?

Tento responder: apaixonar-se é idealizar o outro, durar no amor é lidar com a realidade do amado ou da amada. Antes de ponderar os charmes da idealização, duas observações.

Um impasse: para manter a paixão, devo continuar idealizando o parceiro. Mas, para idealizar o outro, devo mantê-lo a distância. Se mantenho o outro a distância, renuncio aos prazeres de amor, companheirismo, cumplicidade, convivência.

Um paradoxo: se me separo porque me apaixono por outra ou outro, o parceiro que deixei se distancia de mim, portanto volto a idealizá-lo e a me apaixonar por ele.

2) Por que gostaríamos tanto de idealizar o outro que vislumbramos num novo encontro? Uma nova paixão amorosa é provavelmente o sentimento que mais pode nos transformar, para o bem ou para o mal. Por exemplo, se o outro me idealiza, carrego seu ideal como um casaco novo: modifico minha postura para que o pano caia bem no meu corpo. De uma certa forma, tento me parecer com o ideal que o outro ama em mim.

Cada amor, quando começa, é uma aventura. Não porque encontro um novo parceiro, mas porque, ao me apaixonar, descubro ou invento um novo ideal e, ao ser amado, mudo para me aproximar do que o outro imagina que eu seja.

A inconstância amorosa talvez seja a expressão imediata do desejo de mudar - não de trocar de parceiro, mas de se reinventar.

Não é estranho que, na hora em que um amor começa, alguém decida se dar um novo nome. Nenhuma mentira nisso, apenas a convicção e a esperança de que a paixão nos transforme.

Infelizmente, mudar é difícil: a sedução exercida pelos novos amores é uma veleidade, um pouco como as resoluções de que as coisas serão diferentes no ano que começa.

3) Dizem que um casal que se ama briga muito. O uso erótico das brigas é conhecido: a paz se faz na cama. Menos conhecido é o uso amoroso das brigas: chegar ao limite da ruptura pode ser um
jeito de recomeçar, de voltar ao momento inicial da paixão, quando ambos esperavam que o amor os transformasse.

Problema: ninguém sabe qual é o ponto de equilíbrio além do qual as brigas não garantem renovação nenhuma, apenas desgastam um amor que se perde.

4) Alguém se apaixona por outra pessoa porque, ele se queixa, sua parceira precisa dele. É aquela coisa: seu amor me exige demais, você me sufoca, me prende. Isso, é claro, é um jeito de
dizer: com você sou sempre o mesmo. Também é uma projeção: separo-me porque não agüento minha própria dependência de você. Visto que me detesto por estar a fim de lhe pedir amor a cada minuto, acho intolerável que você me peça. Quem pensa e age assim, em geral, fica sozinho no fim.

5) Um homem volta para o lar depois de ter estado nos braços de outra. Sua mulher pergunta: você me ama ainda? Ela tem razão, é a única pergunta que importa.

Uma mulher volta para o lar depois de ter estado nos braços de outro. Seu homem pergunta: você esteve com ele? Insiste: quero a verdade. Pede os detalhes: gostou? Gozou? Onde aconteceu, em que posição, quantas vezes?

O ciúme feminino é uma exigência amorosa. O ciúme do homem é uma competição com o outro, um duelo de espadas, uma esgrima homossexual que tem pouco a ver com o amor pela amada e muito a ver com as excitantes lutinhas masculinas da infância.

Enfim, quem sabe o filme nos ajude a inventar jeitos de amar menos desafortunados e mais interessantes.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

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Amor:
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Um lance de dados jamais abolirá o acaso.
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segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Silêncio, é madrugada!

Adoniran Barbosa

Em homenagem ao dia do Samba, que foi ontem, esta música (do moço aí em cima) que entrou para o repertório das minhas favoritas assim que a conheci:

No Morro da Casa Verde
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Silêncio, é madrugada.
No morro da casa verde
A raça dorme em paz
E lá embaixo
Meus colegas de maloca
Quando começa a sambá não pára mais
Silêncio!

Valdir, vai buscar o tambor
Laércio, traz o agogô
Que o samba na casa verde enfezou!
Silêncio!

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Tudo Pela Metade


"Blue Nude", Picasso


Eu admiro o que não presta
Eu escravizo quem eu gosto
Eu não entendo
Eu trago o lixo para dentro.


Eu abro a porta para estranhos
Eu cumprimento
Eu quero aquilo que não tenho
Eu tenho tanto a fazer
Eu faço tudo pela metade
Eu não percebo

Eu falo muito palavrão
Eu falo muito mal
Eu falo muito mesmo sem saber o que estou falando
Eu falo muito bem, eu minto.

(Marisa Monte E Nando Reis)

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Pequena homenagem a Deborah Kerr, que faleceu hoje, aos 86 anos:

Debora Kerr e Burt Lancaster em A um passo da eternidade (1953), no beijo mais famoso da história do cinema.

sábado, 13 de outubro de 2007

Embriagai-vos!

Henri de Toulouse-Lautrec, Au salon de la rue des Molins, 1894
(www.toulouselautrec.free.fr)


É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e voz faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:

- É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.
Baudelaire: paradoxalmente um clichê, em tempos tão comedidos, tão politicamente corretos. É certo que a embriaguez de que fala o poeta não é somente a de Baco, mas é certo também que não somos ébrios nem mesmo de virtudes...
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De forma que este é um post nostálgico, singela homenagem à perdida boemia de um Rimbaud, encharcada de vinho e absinto, dos cabarés esfumaçados de Toulouse-Lautrec (com quem compartilho a obsessão por meias pretas), de um charme lânguido e um tanto devasso...
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Trilha sonora para o post (na voz de Liza...):
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What good is sitting alone in your room?
Come hear the music play.
Life is a Cabaret, old chum,
Come to the Cabaret.
(Fred Ebb)


sexta-feira, 12 de outubro de 2007

A vida é invenção

Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranqüiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, psicultura, todas as turas deste mundo.

(cap. 73 de O Jogo da Amarelinha, Cortázar)
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Vídeo com depoimentos sobre Vinicius. Me toca especialmente o de Ferreira Gullar, que rendeu o título deste post:


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O mundo é um moinho
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Ainda é cedo, amor
mal começaste a conhecer a vida
já anuncias a hora de partida
sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
embora eu saiba que estás resolvida
em cada esquina cai um pouco a tua vida
e em pouco tempo não serás mais o que és

preste atenção, o mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
vai reduzir as ilusões a pó...
Ouça-me bem, amor

Preste atenção, querida
de cada amor tu herdarás só o cinismo
quando notares estás à beira do abismo
abismo que cavaste com teus pés

(Cartola, 1976)


Lindo, lindo... Ultimamente não me sai da cabeça...

terça-feira, 2 de outubro de 2007

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Desagradável sensação de estar à deriva.
Sem "irmandade com as coisas", como já diria Álvaro de Campos.
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Petits desplaisirs - II


Lilian n'aime pas:


Academicismos

Intelectualóides

Posers



http://odelicadodavida.blogspot.com/2007/08/petits-plaisirs-ii.html



domingo, 23 de setembro de 2007

Paris, Texas:







Fim de semana Wim Wenders: revi Asas do Desejo, que agora, depois de alguns anos, pude apreciar bem - extremamente poético, filosófico, fotografia maravilhosa...

E finalmente consegui assistir a Paris, Texas (agora que lançaram uma coleção do Wim Wenders): despretensioso, tocante, lindo!!! Fotografia magnífica, sem falar no deslumbre que é Natassja Kinski...


sábado, 22 de setembro de 2007

Vai, vai, vai, vai!


Ossanha (ou Ossaim), by Carybé


"Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém"
("Berimbau", Vinicius e Baden Powell)

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Vídeo memorável, com Vinicius, Tom, Toquinho e Miúcha cantando "Berimbau" e "Canto de Ossanha":


sábado, 15 de setembro de 2007

Munch, Melancholy


Um boi vê os homens

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se
a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade,
e como neles há pouca montanha,
e que secura e que reentrâncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessárias. Têm, talvez,
certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido
vazio interior que os torna tão pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós?), sons que de despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.


Carlos Drummond de Andrade


***


Conversa de bois

- Que é que está fazendo o carro?
- O carro vem andando, sempre atrás de nós.
- Onde está o homem-do-pau-comprido?
- O homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta está trepado no chifre do carro.
- E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois?
- O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando devagar... Ele está babando água dos olhos...


Guimarães Rosa

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Caeiro nosso de cada dia...

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

(poema XLVI de O Guardador de Rebanhos)

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer...



Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro

***

Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo
Eu já lhe expliquei que não vai dar
Seu pranto não vai nada mudar
Eu já convidei para dançar
É hora, já sei, de aproveitar
Lá fora, amor
Uma rosa nasceu
Todo mundo sambou
Uma estrela caiu
Eu bem que mostrei sorrindo
Pela janela, ói que lindo
Mas Carolina não viu

Carolina
Nos seus olhos tristes
Guarda tanto amor
O amor que já não existe
Eu bem que avisei, vai acabar
De tudo lhe dei para aceitar
Mil versos cantei pra lhe agradar
Agora não sei como explicar
Lá fora, amor
Uma rosa morreu
Uma festa acabou
Nosso barco partiu
Eu bem que mostrei a ela
O tempo passou na janela
Só Carolina não viu


Chico Buarque

***

"Eu sou Ofélia. Aquela que o rio não conservou. A mulher na forca. A mulher com as veias cortadas. A mulher com excesso de dose SOBRE OS LÁBIOS NEVE a mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem deixei de me matar. Estou só com meus seios, minhas coxas, meu ventre. Rebento os instrumentos do meu cativeiro - a cadeira, a mesa, a cama. Destruo o campo de batalha que foi o meu lar. Escancaro as portas para que o vento possa entrar e o grito do mundo. Despedaço a janela. Com as mãos sangrando rasgo as fotografias dos homens que amei e que se serviram de mim na cama, mesa, na cadeira, no chão. Toco fogo na minha prisão. Atiro minhas roupas no fogo. Exumo do meu peito o relógio que foi o meu coração. Vou para a rua, vestida em meu sangue."

Hamlet-machine, Heiner Müller

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Rouge, toujours...

"...eu mocinha onde eu era uma flor da montanha sim quando eu punha a rosa em minha cabeleira como as garotas andaluzas costumavam ou devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensei tão bem a ele como a outro e então eu pedi a ele com os meus olhos para pedir de novo sim e então ele me pediu quereria eu sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus braços em torno dele sim e eu puxei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todos perfume sim o coração dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims."


Ulisses, James Joyce.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007


Renda é poesia dos fios.

domingo, 26 de agosto de 2007

Mais um pouco de mar...

Miragem do Porto

Eu sou aquele navio
no mar sem rumo e sem dono.
Tenho a miragem do porto
pra reconfortar meu sono,
e flutuar sobre as águas
da maré do abandono
Ê lá no mar
Eu vi uma maravilha.
Vi o rosto de uma ilha
Numa noite de luar
Êta luar
Lumiou meu navio,
Quem vai lá no mar bravio
Não sabe o que vai achar
E sou a ilha deserta
Onde ninguém quer chegar.
Lendo a rota das estrelas,
na imensidão do mar
chorando por um navio
ai, ai, ui, ui
Que passou sem lhe avistar.

Lenine/ Braulio Tavares


P.S.: Adoro essa música, especialmente no arranjo feito por Xangai e o Quinteto da Paraíba.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Vontade de mar


Aí está ele, o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E aqui está a mulher, de pé na praia, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais ininteligível dos seres vivos. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões.
Ela olha o mar, é o que pode fazer. Ele só lhe é delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra. São seis horas da manhã. Só um cão livre hesita na praia, um cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é um mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar.
Seu corpo se consola com sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite manter-se quente e é essa exigüidade que a torna pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio das seis horas. A mulher não está sabendo, mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora da manhã, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização. Nessa hora ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto, prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
Vai entrando. A água salgada é de um frio que lhe arrepia em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal – a alegria é uma fatalidade – já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seus mais adormecidos sonos seculares. E agora ela está alerta, mesmo sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda – e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que oposição pode ser um pedido.
O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda. O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada.
Agora o frio se transforma em frígido. Avançando ela abre o mar pelo meio. Já não precisa da coragem, agora, já é antiga no ritual. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol, quase imediatamente já estão endurecendo de sal. Com a concha das mãos faz o que sempre fez no mar, e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe em goles grandes, bons.
E era isso que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal secado pelo sol, as ondas suaves lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto.
Mergulha de novo, de novo bebe, mais água, agora sem sofreguidão pois não precisa mais. Ela é a amante que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, e ela mergulha de novo; está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer. Quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate. A mulher não recebe transmissões. Não precisa de comunicação.
Depois caminha dentro da água de volta à praia. Não está caminhando sobre as águas – ah nunca faria isso depois que há milênios já andaram sobre as águas – mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera.
E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso. E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos são de náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.




Clarice Lispector. "As águas do mar", in: Onde estivestes de noite

Petits plaisirs - II

Lilian aime...

Tapetes de flores amarelas
Barulho de folhas secas
Cheiro de fruta madura



http://odelicadodavida.blogspot.com/2007/06/petits-plaisirs-et-desplaisirs.html

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Conselhos inestimáveis e sempre necessários de Vinicius...

Como dizia o poeta

Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu

Ah, quem nunca curtiu uma paixão nunca vai ter nada, não

Não há mal pior do que a descrença
Mesmo o amor que não compensa é melhor que a solidão
Abre os teus braços, meu irmão, deixa cair
Pra que somar se a gente pode dividir
Eu francamente já não quero nem saber
De quem não vai porque tem medo de sofrer

Ai de quem não rasga o coração, esse não vai ter perdão
Quem nunca curtiu uma paixão, nunca vai ter nada, não

***

"Pergunte pro seu Orixá: o amor só é bom se doer"

terça-feira, 21 de agosto de 2007

El Deseo

Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar.
Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.




cap. 7 de O Jogo da Amarelinha, de Cortázar.
Kertész, Distortion, 1933
Me afogando nas minhas próprias águas.
Com desejo e medo de navegar outros mares.
Alvarez Bravo, First Solitude, 1956


O de sempre... parte II

A felicidade pertence aos que se bastam a si próprios.
(Aristóteles)

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

"I just don't know what to do with myself..."

sábado, 11 de agosto de 2007

Dança da Solidão

Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo

Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão

Desilusão, desilusão
Danço eu dança você
Na dança da solidão

Caméllia ficou viúva, Joana se apaixonou
Maria tentou a morte, por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado
Quando eu penso no futuro, não esqueço o meu passado

Quando vem a madrugada, meu pensamento vagueia
Corro os dedos na viola, contemplando a lua cheia
Apesar de tudo existe uma fonte de água pura
Quem beber daquela água, não terá mais amargura

(Paulinho da Viola)


O caracol é uma solidão que anda na parede.
(Manoel de Barros)

terça-feira, 31 de julho de 2007

Little boxes




Little boxes on the hillside,
Little boxes made of ticky-tacky,
Little boxes, little boxes,
Little boxes, all the same.

There's a green one and a pink one
And a blue one and a yellow one
And they're all made out of ticky-tacky
And they all look just the same.

And the people in the houses
All go to the university,
And they all get put in boxes,
Little boxes, all the same.

And there's doctors and there's lawyers
And business executives,
And they're all made out of ticky-tacky
And they all look just the same.

And they all play on the golf-course,
And drink their Martini dry,
And they all have pretty children,
And the children go to school.

And the children go to summer camp
And then to the university,
And they all get put in boxes
And they all come out the same.

And the boys go into business,
And marry, and raise a family,
And they all get put in boxes,
Little boxes, all the same.

There's a green one and a pink one
And a blue one and a yellow one
And they're all made out of ticky-tacky
And they all look just the same.

(Malvina Reynolds em 1962)

Abaixo os rótulos e a homogeneidade!!!

domingo, 22 de julho de 2007

Momento metalingüístico

Sempre a literatura o urdume de minha tessitura...

sábado, 21 de julho de 2007

Madeleine a la veilleuse (1630-35), Georges de la Tour

"De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro não fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia." (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa)

Afinal, a metafísica é mesmo só conseqüência de se estar mal disposto? Cabeça vazia é oficina do diabo? Pensar é estar doente dos olhos?
Só consegui chegar a uma conclusão: se a metafísica é inevitável, há que se encontrar uma forma de esse pensar sem fim não levar à destruição (de si e do que está ao redor)...

Pequena homenagem

Rua de casa, em São João da Boa Vista


"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."

(Alberto Caeiro)




P.S.: fato curioso: ninguém em casa reconheceu que essa era a rua de casa...

terça-feira, 17 de julho de 2007

O de sempre...

Tenho pensado que, talvez, para aqueles que são felizes, a felicidade esteja no simples fato de estarem vivos. Por isso, as circunstâncias em que se dão suas vidas não interferem em sua felicidade, porque não passam disso: circunstâncias.

Já para os infelizes, estarem vivos não é o bastante - ou, antes, a consciência de estarem vivos pode ser justamente a razão de sua infelicidade. Assim, estão sempre numa busca cega e infindável por aquilo que lhes traga felicidade, e que nunca basta - afinal, se estar vivo não basta, o que mais pode bastar?

De forma que, talvez, seja necessário isto: descobrir a alegria que há na própria vida, na vida em si, e só.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

"Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. 'Oi, oi, oi...', gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende?" (C. Lispector, Perto do Coração Selvagem)

Pros meus dias ocos, mornos, planos, inférteis, protocolares, desbotados, secos, amelódicos

Pros meus dias de coração deserto, de café frio, de tristeza batida, de notícias velhas, de domingos intermináveis, de poeira acumulada, de flores murchas, de água parada

Pros meus dias sem tempero, sem perfume, sem forma, sem assunto

...Brinquedinhos bobos de palavras.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Petits plaisirs et desplaisirs

Lilian aime:


Cheiro de chuva

Cheiro de café passado na hora

Manhãs ensolaradas de inverno

Sorrisos

Abraços bem apertados



Lilian n'aime pas:


Café frio e fraco

Coisas mal feitas

Dias quentes demais

Silêncios longos

Narizes empinados

segunda-feira, 11 de junho de 2007


Florzinha que eu ganhei hoje do Caiame, meu ex-aluno...
: )

sexta-feira, 8 de junho de 2007

(Ballet do Senegal 1)
Dançar muito, sempre, subir, descer, rodar, girar até o mundo cair. Dançar e soltar a alegria que fica sempre escondida dentro da concha. Dançar e sentir a loucura tomar a cabeça, até que a cabeça seja de novo corpo, só corpo, sem pensamento. Que é pensar que desbota a vida.

Brincar no eixo, sair do eixo, não ter mais eixo. Só enlouquecendo um pouco é que é possível viver.

E então a poesia do corpo, gestos de renda brincando no ar, sem rumo, sem
linha, sem alvo, sem tempo. Gozo puro do presente, na ausência de memória, de consciência, de desejo.

domingo, 13 de maio de 2007

O delicado da vida

Nunca pensei que um dia teria um blog. Mas está aí meu primeiro, nas suas primeiras linhas.

Acho que ele veio pela necessidade que tenho tido de gestos de delicadeza. Às vezes, ganho alguns de presente (como o conto da Isabel Allende que ganhei da Mazoo), o que prefiro, mas na maior parte do tempo tenho que procurar por eles.

Vou buscando minhas "esponjas de rimas" na Clarice (sempre, e por isso ela não podia deixar de estar aqui desde o início), no Pessoa, Drummond, Bandeira, Raduan e tantos outros...

Às vezes vou à Amélie (que pode ser a Poulain ou a minha gatinha branca), ou ao Kieslowski de "A liberdade é azul", ou ao Kaufman de "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", ou ao Carvalho de "Lavoura Arcaica", entre outros...

Ou então é uma música, uma lembrança aconchegante, ou é simplesmente ficar rodopiando sozinha no meio da sala...

Bom, o blog é isso: pequenos gestos de delicadeza pra tornar a vida um pouco mais fácil...

***
Só para começar: fiquei hoje cantarolando uma música que a gente cantava no teatro, em momentos especiais. Não conheço ninguém do grupo a quem essa música não tenha marcado. Às vezes, quando preciso, ela volta. Não sei quem é o autor, nem se a letra está totalmente correta - só aprendi a cantar. Eis:

"En una palangana hierra
Siempre violetas para tí
En una palangana hierra
siempre violetas para tí
Y andando cerca del río
En un caracol vacío
En un caracol vacío
Acho un cochucho para tí
A las cosas que son feas
Pones un poco de amor
A las cosas que son feas
Pones un poco de amor
Y verás que la tristeza
Y verás que la tristeza
Y verás que la tristeza
Va cambiando de color."

P.S.: adoro a palavra "cochucho", embora não saiba exatamente o que ela significa...