terça-feira, 21 de outubro de 2008

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DESTRUIÇÃO

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 12 de julho de 2008

Here comes the sun

Here comes the sun, here comes the sun,
and I say it's all right

Little darling, it's been a long cold lonely winter
Little darling, it feels like years since it's been here
Here comes the sun, here comes the sun
and I say it's all right

Little darling, the smiles returning to the faces
Little darling, it seems like years since it's been here
Here comes the sun, here comes the sun
and I say it's all right

Sun, sun, sun, here it comes...
Sun, sun, sun, here it comes...
Sun, sun, sun, here it comes...
Sun, sun, sun, here it comes...
Sun, sun, sun, here it comes...

Little darling, I feel that ice is slowly melting
Little darling, it seems like years since it's been clear
Here comes the sun, here comes the sun,
and I say it's all right
It's all right

(The Beatles)


Pedi pra tocar a música. Me explicou como se eu tivesse cinco anos que não ia dar, porque faltava um negocinho pra colocar no violão, pra dar o tom certo da música. Mas depois tocou mesmo assim.
A esse praticamente desconhecido que me fez essa pequena delicadeza, provavelmente sem se dar conta do quanto me tocou. Talvez o sol realmente venha.

domingo, 22 de junho de 2008

Porque, afinal, viver ultrapassa todo entendimento...


"Distorção"

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

(De O Guardador de Rebanhos)


Já tive lá minhas pendengas com Caeiro, mas não adianta: volta e meia lá estou novamente batendo à sua porta. Ou talvez, simplesmente, não (me) seja possível tapar os seus versos com a peneira.

O fato é que, nos últimos tempos, não consigo tirar da cabeça esses benditos aí de cima. Em primeiro lugar, por uma grande e antiga dificuldade: a de viver puramente o presente, sem antecipações ou rememorações, sem expectativas e suas respectivas frustrações. Enfim, como é difícil deixar a vida acontecer simplesmente, e estar aberta para o que quer que ela traga consigo...

Em segundo lugar, por algo mais positivo que percebo como essencial em mim: estou sempre buscando libertar o meu olhar, tentando enxergar aquilo que eu nunca havia notado antes e ver as coisas sempre de ângulos diferentes... É claro que já não se concebe um pensamento totalmente a-histórico, isento de qualquer condicionamento, mas acredito também que seja fundamental tentar tirar o máximo possível de vendas. E esse 'desvendamento' é com certeza um dos meus maiores prazeres...
Vinicius, no "Samba da Bênção":

A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento

Combinação rara e invejável a de Carlinhos Lyra, quando o comum das gentes é pensar demais e sentir de menos, pensar de menos e sentir demais, pensar demais e não agir, agir sem pensar, enfim...

Com certeza mereceu a menção do poeta...

quinta-feira, 3 de abril de 2008

E por falar em borboletas...

A Noiva Cadáver, de Tim Burton



A Noiva Cadáver é um filme de inúmeras qualidades: belíssimo, sensível, de humor sutil, com um visual irretocável que, pra mim, é uma expressão perfeita da atmosfera do século XIX. Mas o que me tocou especialmente e me fez escrever esse post foi a sua cena final, inesquecível: o momento em que a protagonista finalmente consegue libertar sua alma, que se desfaz em milhares de borboletas. A imagem por si só é deslumbrante, mas pensar no que a motivou é que me deixa sem ar: em grego, o primeiro sentido da palavra psyké era "borboleta"; de uma associação já muito poética, derivou-se o sentido de "alma", "espírito".
Simplesmente não consigo deixar de me impressionar sempre com a extrema sensibilidade de Tim Burton ao resgatar uma metáfora tão antiga e tão tão bonita.

Engolindo borboletas...


A coisa especial que acontecia com aquele coelho era também especial com todos os coelhos do mundo. É que ele pensava essas algumas idéias com o nariz dele. O jeito de pensar as idéias dele era mexendo bem depressa o nariz. Tanto franzia e desfranzia o nariz que o nariz vivia cor-de-rosa. Quem olhasse podia achar que pensava sem parar. Não é verdade. Só o nariz dele é que era rápido, a cabeça não. E para conseguir cheirar uma só idéia, precisava franzir quinze mil vezes o nariz.

Pois bem. Um dia o nariz de Joãozinho - era assim que se chamava esse coelho - um dia o nariz de Joãozinho conseguiu farejar uma coisa tão maravilhosa que ele ficou bobo. De pura alegria, seu coração bateu tão depressa como se ele tivesse engolido muitas borboletas. (...)
(Clarice Lispector, O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999)

segunda-feira, 17 de março de 2008

De tudo fica um pouco...

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Billie Holiday cantando:

Autumn in New York

Autumn in New York
Why does it seem so inviting
Autumn in New York
It spells the thrill of first-nighting

Glittering crowds and shimmering clouds
In canyons of steel
They're making me feel I'm home

It's Autumn in New York
That brings the promise of new love
Autumn in New York
Is often mingled with pain

Dreamers with empty hands
May sigh for exotic lands
It's Autumn in New York
It's good to live it again

Autumn in New York
The gleaming rooftops at sundown
Oh, Autumn in New York
It lifts you up when you run down

Yes, jaded roués and gay divorcés
Who lunch at the Ritz
Will tell you that it's divine

This Autumn in New York
Transforms the slums into Mayfair
Oh, Autumn in New York
You'll need no castles in Spain

Yes, lovers that bless the dark
On the benches in Central Park
Greet Autumn in New York
It's good to live it again

E mais uma coleção de memórias de pele, de cheiros, de sons, intraduzíveis por palavras ou imagens...


quinta-feira, 6 de março de 2008

De consolo, ao menos alguma poesia

Munch, Woman in the verandah

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Drummond, Alguma Poesia